"-... esse sujeito de quem estou falando trabalhava como domador de cavalos (...) parecia ter sido feito por encomenda para domar os potros; mas a verdade é que ele tinha outro ofício: o de 'provocador'. Era provocador de sonhos. Isso é que ele era realmente." Pedro Páramo, Juan Rulfo.

domingo, 1 de março de 2009

Crianças e cachorros



A volta de Rabisco
por Alcino Leite Neto

Tudo aconteceu em 1966, um ano muito agitado, o mesmo em que Mao Tse-tung começou a Revolução Cultural, militares tomaram o poder na Argentina, a guerra no Vietnã se agravou, Lennon disse que os Beatles eram mais populares que Jesus, o Brasil jogou uma das suas piores Copas do Mundo e estreou na TV o primeiro capítulo de "Jornada nas Estrelas".

Para mim, que tinha sete anos, foi apenas o ano em que travei amizade com Rabisco, um boxer mestiço muito sombrio e mal-encarado, de pelo marrom encardido, que tinha sido levado para minha casa a fim de servir de vigia noturno e caçador dos gatos vira-latas que alcovitavam à noite no quintal, com seus gritos dissonantes.

O cão é o melhor amigo da criança -se os adultos não entram no meio da relação. Rabisco e eu éramos unha e carne. Mas, pouco a pouco, talvez por ciúmes, meus pais cismaram que ele andava mais entusiasmado com minhas brincadeiras do que com seu trabalho de vigilante.

Deram de achá-lo manso demais, relapso e preguiçoso, quando não uma ameaça à higiene familiar e à minha saúde, com seus maus modos de penetrar pela casa sem limpar as patas e despejar pelos cantos a baba sanguinolenta (porque, naquele tempo, os cães comiam os restos de carne, esfregavam os focinhos em lavagens e não tinham estas regalias de donzelas que têm os animais de hoje).

Eu mesmo não percebia as ameaças sanitárias e me emporcalhava ao seu lado, de igual para igual. Éramos dois bons selvagens, com a diferença de que eu frequentava o grupo escolar.

Uma bela tarde, Rabisco sumiu de minha casa. Tinha sido levado às escondidas por meu pai, de caminhonete, para uma chácara distante da cidade, um lugar onde ele nunca estivera. Meus berros de tristeza não valeram de nada e ainda me renderam algumas palmadas.

Foram dias terríveis de solidão para mim. Eu trocaria, facilmente, meus pais pelo cão e ainda entregaria, de lambuja, minha caixa de bolas de gude.

Dias depois, à noitinha, quando estávamos jantando (ainda não havia o ruído onipresente da TV), ouvimos umas batidas estranhas na porta da frente. Era Rabisco, que arranhava a pata na madeira, pedindo para entrar. O boxer rebelde tinha fugido da chácara, farejado o seu retorno por mais de dez quilômetros e pela cidade inteira, até reencontrar, sozinho, no escuro, a casa onde vivera.

Eu pulei de alegria sobre o cão, e ele sobre mim, enquanto meus pais debatiam, aturdidos, esse retorno inexplicável. Impressionados com o enigma e com tamanha prova de devoção, eles autorizaram Rabisco a voltar para o quintal, onde ele morou até ser atingido por uns vermes malignos e morrer, em 1971 -este ano chatíssimo, que nem vale a pena lembrar.

Revista da Folha, 1o. de março de 2009, p. 48.

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho uma história bem parecida.A diferença é que não foram os meus pais que o levaram e além disso,o cachorrinho nunca mais voltou =/ Linda história !
Prii =)